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Artropatia de charcot do mediopé no paciente diabético: complicação de uma doença epidêmica

O diabetes é uma doença crônica com grande prevalência na sociedade moderna e intimamente associada à obesidade. Constitui um problema de saúde pública devido a uma epidemia mundial já em curso, com prevalência de 171 milhões de pessoas afetadas no ano de 2000.

A introdução da insulina no tratamento da doença proporcionou melhora no controle da glicemia e aumentou a sobrevida dos pacientes. Em decorrência disso, complicações tardias do diabetes, raramente observadas no passado, passaram a ser notadas com maior frequência.

A neuropatia periférica é a principal causa de complicação tardia nos pés dos pacientes diabéticos. As deformidades decorrentes da paralisia muscular intrínseca, da perda da sensibilidade protetora dos pés e da destruição osteoarticular no pé e tornozelo são as três ocorrências mais comuns que predispõem ao aparecimento das úlceras de pressão nos pés.

Artopatia de Charcot, que afeta os pés e tornozelos, está se tornando um problema relativamente comum nos pacientes diabéticos, principalmente naqueles em que a doença se desenvolveu por mais de 10 anos.

A destruição e o desarranjo da arquitetura osteoarticular do pé podem criar deformidades e instabilidades e o subsequente surgimento de proeminências ósseas, principalmente quando a lesão acomete o mediopé e provoca o colapso do arco medial.

O diagnóstico precoce da artropatia de Charcot e o imediato início do tratamento podem ser decisivos na evolução da doença com relação à preservação ou amputação do pé.

Os objetivos deste estudo são: 1) traçar o perfil epidemiológico dos pacientes diabéticos portadores de artropatia de Charcot acometendo exclusivamente o mediopé ou estendendo-se do mediopé ao retropé; 2) avaliar, a médio prazo, o resultado do tratamento a que esses pacientes são submetidos seguindo um protocolo preestabelecido. Neste estudo, definimos como sucesso a preservação de um pé funcional e insucesso como amputação do pé. Nossa hipótese é que, no nosso meio, o diagnóstico da artropatia de Charcot associada ao diabetes é feito tardiamente e isso prorroga o início do tratamento, podendo contribuir negativamente para o desfecho. Acreditamos na hipótese de que a sistematização do tratamento ortopédico pode contribuir para reduzir a frequência de amputações.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Aspectos epidemiológicos

No período de 12 anos, compreendido entre março de 1998 a junho de 2011, foram tratados, no ambulatório especializado de cirurgia do pé e tornozelo do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da nossa instituição, 580 pacientes diabéticos. Cento e setenta e quatro pacientes (30%), perfazendo 206 extremidades, eram portadores de artropatia de Charcot acometendo o pé e tornozelo. Selecionamos para este estudo os pacientes diabéticos portadores de neuropatia periférica com perda da sensibilidade protetora da extremidade e de artropatia de Charcot que acometia exclusivamente a articulação de Lisfranc (tipo I de Brodsky)(12), as articulações talonavicular, calcaneocuboide e subtalar (tipo II de Brodsky) ou as articulações do mediopé com extensão ao retropé (tipo IV de Trepman). Nesta série, excluímos os pacientes que tinham tempo mínimo de seguimento inferior a 12 meses e aqueles cujos prontuários médicos não continham informações suficientes para o estudo. Nossa amostra final foi, então, constituída de 88 pacientes, dos quais 22 tinham acometimento bilateral, totalizando 110 extremidades.

Os pacientes foram convocados para reavaliação clínica no período compreendido entre março e dezembro de 2010. Responderam ao chamado 21 dos 88 pacientes (24%). Esses pacientes foram entrevistados e submetidos a exames físico e radiográfico. As informações dos demais 67 pacientes (76%), que não puderam comparecer pessoalmente para reavaliação, foram coletadas nos prontuários médicos da instituição, que continham histórico, dados dos exames clínico e laboratorial, fotografias e radiografias das extremidades acometidas. A média de idade dos 35 pacientes do sexo feminino e 53 do sexo masculino no início do acompanhamento ambulatorial foi 59 anos (variação de 32 a 87 anos). O tempo médio de seguimento foi 21 meses.

O diabetes tipo II foi prevalente em 80 dos 88 pacientes (91%). Faziam uso regular de insulina 55 pacientes (62%). O tempo médio transcorrido desde o aparecimento dos primeiros sintomas do diabetes e o início da artropatia de Charcot foi 12 anos (variação de zero a 44 anos). Nos oito pacientes (9%) portadores do diabetes tipo I o intervalo médio entre o diagnóstico da doença e o início dos sintomas da artropatia de Charcot foi 19 anos e no grupo de pacientes portadores de diabetes tipo II esse intervalo médio foi 11 anos.

Vinte e oito pacientes (32%) eram tabagistas e 24 (27%), etilistas. A associação entre os dois hábitos foi encontrada em 16 pacientes (18%). Tabagismo e etilismo foram definidos de acordo com os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A presença de algum grau de vasculopatia, mesmo sem repercussão clínica aparente, foi detectada em 41 dos 88 pacientes (47%). Os critérios para avaliação deste distúrbio envolveram a palpação comparativa, em ambas extremidades, dos pulsos distais tibial anterior e tibial posterior e também pela constatação do tempo de enchimento capilar, considerado normal quando ocorria em até três segundos.

No momento da chegada dos 88 pacientes ao nosso ambulatório, a localização anatômica das lesões foi avaliada com base nas imagens radiográficas e apresentou a seguinte distribuição: articulações tarsometatársicas (TM) (tipo I de Brodsky) em 45 pacientes (51%); articulações talonavicular (TN), calcaneocuboide (CC) e subtalar (ST) (tipo II de Brodsky) em 20 (23%); e acometimento das articulações do mediopé com extensão ao retropé (tipo IV de Trepman) em 23 pacientes (26%) (Tabela 1).


O estágio evolutivo da doença também foi avaliado no início do acompanhamento ambulatorial de acordo com a classificação de Eichenholtz. A seguinte distribuição foi observada nos 88 pacientes: em 41 (47%), a lesão encontrava-se na fase inicial de fragmentação óssea (tipo I); em 17 (19%), na fase hipertrófica de consolidação (tipo II); e em 30 (34%), a lesão estava na fase tardia de sequela (tipo III).

Protocolo de tratamento da artropatia de Charcot

Na nossa instituição, o protocolo de tratamento da artropatia de Charcot no mediopé segue como base de orientação o estágio evolutivo da doença. As lesões ativas, na fase de fragmentação óssea (estágio I), são caracterizadas clinicamente por edema, hiperemia e hipertermia do pé e tornozelo. Nas radiografias simples do pé acometido visualizamos osteopenia, fragmentação periarticular, subluxação ou até mesmo luxação articular (Figura 1). Os pacientes são tratados empregando o gesso de contato total (GCT) até a resolução da fase inflamatória. A transição da fase de fragmentação para a de coalescência (estágio II) é determinada pela constatação clínica da redução no edema, na temperatura e na hiperemia. Nas radiografias verificamos a presença de absorção, consolidação óssea e esclerose óssea (Figura 2). Os pacientes na fase de coalescência têm o GCT substituído por órtese suropodálica de polipropileno do tipo AFO associada à utilização de calçados protetores confeccionados sob medida para pés insensíveis do tipo extraprofundo. A órtese é mantida até a completa consolidação óssea (fase III de Eichenholtz), caracterizada pela ausência completa de sinais inflamatórios no exame físico e pela presença de consolidação radiográfica (calo e trabéculas ósseas atravessando as linhas de fratura) (Figura 3).



Quando ocorre a consolidação óssea, o paciente é orientado a utilizar calçados protetores para pés insensíveis do tipo extraprofundo. Palmilhas sob medida são prescritas com o objetivo de acomodar as deformidades residuais decorrentes da consolidação viciosa, especialmente quando existe colapso do arco plantar medial ou presença de proeminências ósseas plantares, normalmente localizadas no mediopé. Se houver instabilidade do pé ou tornozelo após a fase de consolidação, indicamos o uso associado da órtese suropodálica em caráter definitivo.

Indicamos cirurgia para a remoção da saliência óssea plantar (exostectomia) quando o pé encontra-se estável, com circulação adequada, mas existe proeminência plantar localizada no mediopé (graus B e C de Schon), com concomitante formação de úlcera recorrente e refratária ao tratamento conservador (desbridamento e GCT).

Nos casos em que a deformidade residual é muito acentuada, quando existe grande instabilidade no mediopé estendendo-se secundariamente ao retropé (grau IV de Trepman) ou na impossibilidade de acomodação do pé numa órtese moldada suropodálica de polipropileno (tipo AFO), a cirurgia reconstrutiva (artrodese modelante) é indicada para tentar salvar o pé de uma possível amputação. Após a cirurgia reconstrutiva, é indicado prolongado período de imobilização com GCT até a consolidação óssea ou anquilose estável do pé ou tornozelo.

A amputação do pé é eventualmente indicada na presença de grave infecção das partes moles ou óssea, nos casos em que são encontradas importantes deformidades com concomitante insuficiência circulatória dos pés ou após falha do tratamento cirúrgico.

Avaliação dos resultados após o tratamento

Para avaliação dos resultados, dividimos o tratamento da artropatia de Charcot no mediopé considerando dois tipos possíveis de desfecho: 1) satisfatório, caracterizado pela preservação de um pé funcional capaz de suportar o peso corporal para deambulação independente, mesmo que necessite do uso de órtese tipo AFO ou bengala para auxílio à marcha; 2) insatisfatório, caracterizado pela amputação decorrente das complicações da artropatia de Charcot ou pela manutenção de um pé incapaz de suportar o peso corporal durante a marcha (uso de muletas ou cadeira de rodas).

Amputações menores localizadas exclusivamente no antepé (dedos, raios, transmetatarsal ou no nível da articulação de Lisfranc), desde que não relacionadas diretamente à artropatia de Charcot com acometimento do mediopé, não foram consideradas relevantes na avaliação final. Tal critério foi adotado quando o fator desencadeador das amputações no antepé foi a presença de úlceras infectadas ou isquêmicas.

Os óbitos ocasionados por alterações relacionadas à artropatia de Charcot foram considerados como resultado insatisfatório do tratamento.

Os fatores de risco como bilateralidade, tabagismo, etilismo, intervalo entre o surgimento do DM e o aparecimento da artropatia de Charcot, uso de insulina, distúrbios vasculares e sensitivos, estágio evolutivo e local do acometimento inicial da artropatia de Charcot foram correlacionados para tentar avaliar a possível influência desses fatores no resultado do tratamento da doença.

Para a análise estatística, foi utilizado o programa SPSS 13.0 para Windows. Medidas descritivas das variáveis quantitativas e as frequências absoluta e relativa das variáveis qualitativas foram obtidas. O teste do Qui-quadrado ou exato de Fisher foi empregado quando comparamos variáveis qualitativas e o teste t de Student foi utilizado quando comparamos variáveis qualitativas com quantitativas.

Os possíveis custos decorrentes do tratamento cirúrgico foram indiretamente presumidos levando em consideração o número de cirurgias realizadas nos pacientes graves.

RESULTADOS

A nossa casuística foi constituída de 88 pacientes, dos quais 22 tinham acometimento bilateral, totalizando 110 extremidades. A média de idade dos 35 pacientes do sexo feminino e 53 do sexo masculino, no início do acompanhamento ambulatorial, foi 59 anos (variação de 32 a 87 anos) e o tempo médio de seguimento foi 21 meses (variação de 13 a 73 meses).

No momento da chegada dos 88 pacientes ao nosso ambulatório, a localização anatômica das lesões apresentou a seguinte distribuição: articulações TM (tipo I de Brodsky) em 45 pacientes (51%); articulações TN, CC e ST (tipo II de Brodsky) em 20 (23%); e acometimento das articulações do mediopé com extensão ao retropé (tipo IV de Trepman) em 23 pacientes (26%).

O estágio evolutivo da doença no momento da primeira consulta teve a seguinte distribuição: em 41 pacientes (47%) a lesão encontrava-se na fase inicial de fragmentação óssea (tipo I de Eichenholtz); em 17 (19%), encontrava-se na fase consolidação (tipo II de Eichenholtz); e em 30 pacientes (34%) a lesão estava na fase tardia de sequela (tipo III de Eichenholtz).

Correlacionando a localização anatômica com o estágio evolutivo da artropatia de Charcot, verificamos que dos 45 pacientes que apresentaram acometimento da articulação TM (Brodsky I), em 22 (49%) a doença encontrava-se na fase evolutiva de fragmentação (tipo I de Eichenholtz); seis (13%) estavam na fase de consolidação (tipo II de Eichenholtz); e 17 (38%) na fase de sequela (tipo III de Eichenhotz) (Figura 4). Neste grupo de 45 pacientes com acometimento da articulação TM, o tratamento incruento foi realizado com sucesso em 35 (78%). Foi necessário algum tipo de cirurgia em 10 pacientes (22%), distribuídas da seguinte forma: exostectomia plantar em quatro pacientes; artrodese modelante em outros quatro; e amputação da extremidade em outros dois pacientes (Figuras 5 e 6).



Dos 20 pacientes que apresentaram artropatia de Charcot afetando as articulações TN, CC e ST (Brodsky tipo II), em nove (45%) a doença encontrava-se na fase evolutiva de fragmentação (tipo I de Eichenholtz); quatro pacientes (20%) estavam na fase evolutiva de consolidação (tipo II de Eichenholtz); e sete (35%) na fase de sequela (tipo III de Eichenhotz) (Figura 4). Neste grupo de 20 pacientes com acometimento das articulações TN, CC e ST, o tratamento incruento foi realizado com sucesso em 12 (60%). Foi necessário algum tipo de cirurgia em oito pacientes (40%), distribuídas da seguinte forma: exostectomia plantar em quatro pacientes; artrodese modelante em outros três; e amputação da extremidade em um único paciente (Figuras 5 e 6).

Dos 23 pacientes que apresentaram artropatia de Charcot envolvendo o mediopé e estendendo-se ao retropé (Trepman tipo IV), em 10 (43%) a doença encontrava-se na fase evolutiva de fragmentação (tipo I de Eichenholtz); sete pacientes (30%) estavam na fase evolutiva de consolidação (tipo II de Eichenholtz); e seis (26%) na fase de sequela (tipo III de Eichenholtz) (Figura 4). Neste grupo de 23 pacientes com acometimento do mediopé e extensão ao retropé, o tratamento conservador foi realizado com sucesso em sete (30%). Foram necessários alguns tipos de cirurgias em 16 pacientes (70%), distribuídos da seguinte forma: artrodese modelante em 15 e amputação da extremidade em um único paciente (Figuras 5 e 6).

Quando analisamos sete fatores de risco (1 - - idade; 2 - tipo de DM; 3 - uso de insulina; 4 - bilateralidade; 5 - tabagismo; 6 - etilismo; e 7 - vasculopatia), todos associados à maior incidência de complicações no tratamento da artropatia de Charcot no paciente diabético, verificamos que no grupo de 75 dos 88 pacientes (85%), cujo resultado do tratamento foi considerado satisfatório, a média de idade foi 59 anos; 68 pacientes (91%) apresentavam DM tipo II; 47 (63%) faziam uso da insulina para o controle clínico da doença; 17 pacientes (23%) tinham acometimento bilateral; 22 (29%) eram tabagistas; 19 dos 75 pacientes (25%) eram etilistas; e 36 (48%) apresentavam sinais clínicos de vasculopatia. No grupo de 13 dos 88 pacientes (15%), cujo desfecho foi considerado insatisfatório, a média de idade foi 62 anos; 12 pacientes (92%) apresentavam DM tipo II; sete (63%) faziam uso da insulina para o controle clínico da doença; cinco pacientes (38%) tinham acometimento bilateral; seis (29%) eram tabagistas; cinco dos 13 pacientes (38%) eram etilistas; e cinco (38%) apresentavam sinais clínicos de vasculopatia. A amostragem foi insuficiente para identificarmos significância estatística em todos os fatores associados, porém, observamos tendência de resultados insatisfatórios nos pacientes com acometimento bilateral da artropatia de Charcot, tabagistas ou etilistas.

Ao correlacionarmos a localização anatômica das lesões (tipos I, II ou IV) com o desfecho do tratamento (satisfatório ou insatisfatório), verificamos que nos 75 pacientes com resultado considerado satisfatório as lesões tiveram a seguinte distribuição: articulações TM (tipo I de Brodsky) em 39 pacientes (52%); articulações TN, CC e ST (tipo II de Brodsky) em 17 (23%); e lesões do tipo misto, estendendo-se do mediopé ao retropé (tipo IV) em 19 dos 75 pacientes (25%). Já no grupo dos 13 pacientes cujo resultado do tratamento foi considerado insatisfatório, a distribuição anatômica das lesões nas extremidades foi a seguinte: articulação TM (tipo I de Brodsky) em seis pacientes (46%); articulações TN, CC e ST (tipo II de Brodsky) em três (23%); e acometimento primário do mediopé com extensão ao retropé (tipo IV de Trepman) em quatro pacientes (31%). Não houve diferença significante ao correlacionarmos a distribuição anatômica das lesões com relação ao desfecho (satisfatório ou insatisfatório) do tratamento.

Correlacionando o estágio evolutivo da artropatia de Charcot (segundo Eichenholtz) com o final do tratamento (satisfatório ou insatisfatório), verificamos que no grupo dos 75 pacientes cujo resultado final foi considerado satisfatório, 35 (47%) encontravam-se na fase inicial de fragmentação (estágio I de Eichenholtz); 14 (19%) na fase de consolidação óssea (estágio II de Eichenholtz); e 26 pacientes (35%) estavam na fase de sequela (estágio III de Eichenholtz). Já no grupo dos 13 pacientes cujo resultado final foi considerado insatisfatório, seis (46%) encontravam-se no estágio I; três (23%) no estágio II; e quatro (31%) no estágio III. Não houve diferença significante ao correlacionarmos a distribuição do estágio evolutivo da artropatia de Charcot com relação ao desfecho (satisfatório ou insatisfatório) do tratamento.

Ao correlacionarmos os resultados com o tipo de tratamento empregado, verificamos que o tratamento incruento, realizado em 54 dos 88 pacientes (61%) da nossa casuística, mostrou resultado considerado satisfatório em 49 (91%) e insatisfatório em cinco pacientes (9%). Com relação ao tratamento cirúrgico, realizado em 34 dos 88 pacientes (39%), o desfecho foi satisfatório em 26 dos 34 (76%) e insatisfatório em oito (24%). Observamos tendência ao resultado satisfatório nos pacientes tratados incruentamente quando comparados àqueles que necessitam de algum tipo de cirurgia; entretanto, não foi possível identificar significância estatística devido à amostragem insuficiente.

Ao compararmos o tipo de cirurgia realizada com o resultado final, observamos que todos os oito pacientes submetidos exclusivamente à exostectomia de proeminência óssea plantar obtiveram resultado satisfatório. Por outro lado, dentre os 23 pacientes submetidos à artrodese modelante, o resultado satisfatório foi alcançado em 18 (78%).

Um dos cinco pacientes, cujo resultado da artrodese modelante foi considerado insatisfatório, necessitou de amputação da extremidade; dois pacientes permaneceram com o membro afetado deformado, instável e incapaz de suportar o peso corpóreo ou de utilizar órtese; e outros dois pacientes foram a óbito devido a complicações como infecção pós-operatória. Em três pacientes foi indicada primariamente a amputação da extremidade como forma de tratamento.

Ao subdividirmos os 88 pacientes da nossa casuística de acordo com a extensão da artropatia de Charcot, estabelecemos dois grupos distintos: grupo I - lesão localizada exclusivamente no mediopé (tipos I e II de Brodsky) em 65 pacientes (74%); e grupo II - lesão estendendo-se do mediopé ao retropé (tipo IV de Trepman) em 23 pacientes (26%).

Comparando o desfecho do tratamento entre estes dois grupos, não verificamos diferença estatisticamente significante com relação ao resultado satisfatório, presente em 54 dos 65 pacientes (86%) nos quais a lesão restringia-se ao mediopé (grupo I) e em 19 dos 23 pacientes (83%) em que as lesões acometiam tanto o mediopé quanto o retropé (grupo II). Entretanto, quando verificamos a necessidade de cirurgia durante o curso do tratamento, observamos que, no grupo I, apenas 18 dos 65 pacientes (28%) precisaram ser operados, enquanto que no grupo II foi necessária cirurgia em 16 dos 23 pacientes (70%).

Esta diferença foi estatisticamente significante (p < 0,001), demonstrando, assim, necessidade de cirurgia durante o tratamento dos pacientes cuja lesão estendia-se do médio ao retropé para que resultado satisfatório pudesse ser obtido. Ao analisarmos o tipo de cirurgia necessário no decorrer do tratamento, no grupo dos 65 pacientes do grupo I (acometimento exclusivo do mediopé), a amputação primária foi indicada em dois pacientes; a exostectomia de proeminência óssea plantar pôde ser realizada com sucesso em oito; enquanto que a artrodese modelante da extremidade foi necessária em outros oito pacientes, tendo sido bem sucedida em seis. Nos dois pacientes submetidos à artrodese modelante cujo desfecho foi insatisfatório, um desenvolveu deformidade instável da extremidade e o outro foi a óbito devido a complicações relacionadas com a infecção pós-operatória.

Do total de 18 pacientes com acometimento exclusivo do mediopé submetidos ao tratamento cirúrgico, o desfecho foi considerado satisfatório em 14 (78%). No grupo dos 23 pacientes com acometimento estendendo-se do mediopé ao retropé (grupo II) foi necessário tratamento cirúrgico em 16 (70%). A amputação primária da extremidade foi indicada em um paciente e a artrodese modelante em outros 15.

O resultado final foi considerado satisfatório em 12 dos 16 pacientes (75%). Nos três pacientes submetidos à artrodese modelante cujo desfecho foi insatisfatório, um desenvolveu deformidade instável da extremidade e os outros dois foram a óbito devido a complicações relacionadas com a infecção pós-operatória. Quando comparamos os pacientes com lesão restrita ao mediopé (grupo I) àqueles cuja lesão estendia-se do mediopé ao retropé (grupo II), não observamos diferença estatisticamente significante com relação ao resultado do tratamento. Porém, para atingir o mesmo número de resultados satisfatórios obtidos no grupo I, foi necessário número significativamente maior de cirurgias nos pacientes com acometimento do médio e retropé (grupo II).

DISCUSSÃO

A amostragem de 88 pacientes (110 extremidades) deste estudo abrange a partir do cadastro de todos os 580 pacientes que realizam acompanhamento no nosso ambulatório especializado e tratam afecções nos pés relacionadas às complicações tardias do DM. Por se tratar de um hospital universitário que oferece atendimento ortopédico terciário e é referência para grande parte da cidade de São Paulo, atendemos elevado número de pacientes já triados com complicações graves.

O diagnóstico da artropatia de Charcot foi confirmado com radiografias dos pés em 174 pacientes, aproximadamente 30% de todos os pacientes diabéticos acompanhados no nosso ambulatório. Destes, 88 pacientes preencheram os critérios de seleção e inclusão para este estudo, correspondendo a, aproximadamente, 51% de todos os casos de artropatia de Charcot identificados no nosso ambulatório e 15% de todos os pacientes com complicações tardias do DM nos pés.

O Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo localiza-se na região central da Grande São Paulo, abrangendo 18 milhões de habitantes(25), e atende pacientes que, na sua grande maioria, não possuem seguro saúde. Assim, podemos considerar que a nossa amostragem retrata uma parcela relativamente significativa dos pacientes diabéticos que procuram a rede pública de saúde para tratamento de problemas graves que afetam os pés.

Ao analisarmos as características dos pacientes diabéticos portadores de artropatia de Charcot afetando primariamente o mediopé ou aqueles em que a doença expandiu-se também ao retropé, identificamos os seguintes padrões: pacientes idosos com média de idade ao redor de 59 anos; doença com longa duração, cuja média atinge 12 anos; predomínio da doença do tipo II (em 91% dos casos); elevado número de pacientes insulinodependentes (62%). Estes dados, quando somados ao perfil socioeconômico dos pacientes atendidos na nossa instituição (baixo nível educacional e baixa renda), geram especial preocupação relacionada ao impacto financeiro na saúde pública.

A artropatia de Charcot é uma das graves manifestações tardias do DM e, aliada às outras complicações, tais como nefropatia, retinopatia e distúrbio cardiocirculatório, pode gerar gastos potencialmente elevados, consumindo enormes recursos financeiros destinados à saúde pública.

Na nossa casuística, 32% dos pacientes eram tabagistas e 27% etilistas, vícios cujo impacto desfavorável é amplamente reconhecido quando associado ao DM(26). Acreditamos que a desinformação, tipicamente relacionada com pacientes tabagistas e etilistas, pode ser combatida com programas de educação.

Algum grau de vasculopatia periférica foi identificado em 47% dos pacientes da nossa série. Na grande maioria dos casos não havia repercussão clínica evidente, uma vez que nosso serviço recebe pacientes previamente triados, com afecções predominantemente ortopédicas. Na nossa série, 22 (25%) dos 88 pacientes apresentaram ocorrência bilateral da artropatia de Charcot.

O tratamento destes pacientes resultou em desfecho desfavorável em cinco (23%), mostrando uma tendência a pior resultado quando comparado ao resultado dos pacientes com lesão unilateral. Na literatura é fato que o resultado do tratamento nos pacientes com acometimento bilateral pela artropatia de Charcot é pior quando comparado ao desfecho do tratamento dos casos unilaterais; entretanto, na nossa série, isto não pôde ser demonstrado devido à amostragem insuficiente.

O emprego do protocolo sistematizado para conduzir o tratamento da artropatia de Charcot afetando o mediopé envolve minimizar os danos e reduzir os riscos de complicações. As deformidades, a instabilidade articular do pé e tornozelo e as proeminências ósseas plantares frequentemente estão associadas ao aumento da pressão durante a fase de apoio da marcha. Em decorrência disso, costumam surgir úlceras e infecções secundárias, o que fatalmente coloca a extremidade do paciente em risco para amputação. Na nossa série, identificamos que o retropé e o tornozelo foram afetados secundariamente a partir de lesões típicas da artropatia de Charcot que iniciavam-se no mediopé.

Acreditamos que a demora em se identificar tanto as lesões osteoarticulares nas articulações TM (tipo I de Brodsky) quanto nas articulações TN, CC e ST (tipo II de Brodsky) retardaram sobremaneira o início do tratamento com GCT.

O diagnóstico equivocado e tardio foi extremamente comum nos pacientes que procuraram atendimento no nosso ambulatório, com a grande maioria deles relatando histórico de longa data entre o aparecimento dos primeiros sintomas e o diagnóstico definitivo da artropatia de Charcot.

Como resultado da falha do diagnóstico e do início tardio do tratamento, verificamos que 26% dos pacientes da nossa série iniciaram o tratamento ambulatorial numa fase avançada da doença, cuja localização das lesões já havia se estendido do mediopé ao retropé (tipo IV de Trepman).

Atribuímos esta progressão da doença ao prolongado período em que os pacientes permaneceram apoiando a extremidade inferior sem nenhum tipo de proteção. Isto certamente contribuiu para o aumento da destruição osteoarticular e para a progressão das deformidades, agravando o quadro clínico e dificultando o tratamento.

Ao avaliarmos a eficácia do protocolo de tratamento da artropatia de Charcot afetando o mediopé empregado neste estudo, verificamos que, após tempo médio de seguimento de 21 meses, 75 dos 88 pacientes (85%) apresentaram resultados satisfatórios, em que foi possível obter um pé plantígrado, estável ou capaz de ser acomodado em órtese moldada do tipo AFO com apoio do peso durante a marcha.

A localização anatômica da lesão (restrita ao mediopé ou estendida ao retropé), o estágio evolutivo da doença no momento da chegada do paciente ao ambulatório (estágios I, II ou III de Eichenholtz) e o tipo de tratamento necessário (incruento ou cirúrgico) não influenciaram o resultado do tratamento (satisfatório ou insatisfatório).

Entretanto, identificamos que os pacientes cuja lesão osteoarticular estendia-se do mediopé ao retropé (tipo IV de Trepman) necessitaram de número significativamente maior de cirurgias (70% dos pacientes) do que os pacientes cuja artropatia de Charcot restringia-se ao mediopé (28%). A indicação cirúrgica para o tratamento dos problemas relacionados à artropatia de Charcot não é opcional dentro dos critérios utilizados no nosso protocolo. A seleção dos pacientes candidatos à cirurgia segue a ordem de gravidade das lesões. Exostectomia plantar é a cirurgia mais simples, sendo indicada para tratar as proeminências ósseas responsáveis pela ulceração recorrente.

Todos os oito pacientes submetidos a este tipo de procedimento tiveram evolução favorável na nossa série. Nos pacientes com graves deformidades instáveis afetando o mediopé e o retropé, incapazes de realizar apoio plantígrado e na iminência de desenvolver úlceras de pressão ou já apresentando ulcerações recorrentes, a artrodese modelante é indicada com objetivo de evitar uma possível amputação da extremidade. Na nossa casuística, a artrodese modelante foi bem sucedida em 18 dos 23 pacientes atingindo índice de salvamento de 78% das extremidades operadas.

Dois dos cinco pacientes cujo resultado foi insatisfatório após a tentativa de salvamento com artrodese modelante foram a óbito; em um paciente foi necessária a amputação da extremidade devido a complicações como infecção no pós-operatório; e, em outros dois, tanto a deformidade quanto a instabilidade da extremidade persistiram, impedindo o apoio do membro durante a marcha, contudo, estes pacientes recusaram a amputação.

O aumento da incidência mundial do DM, principalmente nos países emergentes, é esperado nos próximos anos(3). Além disso, a melhora do controle clínico da doença promove uma maior expectativa de vida nos pacientes diabéticos, prolongando o período de exposição aos riscos de complicações tardias da doença.

Diante do ocorrido, os órgãos públicos de saúde devem priorizar a atenção à educação básica dos pacientes; aos programas especiais de prevenção e tratamento do DM e de suas complicações tardias; à infraestrutura e preparo das unidades de saúde; e ao tratamento precoce das lesões nos pés provocadas pela artropatia de Charcot. Dessa forma, o direcionamento eficaz dos recursos poderia evitar desperdícios com tratamentos onerosos, prolongados e complexos cujos resultados são muitas vezes precários.

CONCLUSÕES

O perfil epidemiológico dos pacientes diabéticos portadores de artropatia de Charcot afetando o mediopé caracteriza-se pela manifestação da doença na terceira idade, em pacientes portadores do DM tipo II que fazem uso crônico de insulina, cuja lesão osteoarticular originada no mediopé estende-se progressivamente ao retropé devido à demora no diagnóstico no início do tratamento adequado. Na grande maioria dos casos (85%), o resultado e nosso protocolo de tratamento da artropatia de Charcot afetando o mediopé foi satisfatório. Entretanto, nos pacientes cuja lesão se estende do mediopé ao retropé (tipo IV) o número de cirurgias necessárias para tentar preservar a extremidade foi significativamente maior do que nos pacientes em que a artropatia de Charcot restringiu-se ao mediopé (tipos I e II).

Revista Brasileira de Ortopedia Print version ISSN 0102-3616 Rev. bras. ortop. vol.47 no.5 São Paulo Sept./Oct. 2012

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-36162012000500013

Artropatia de charcot do mediopé no paciente diabético: complicação de uma doença epidêmica

Ricardo Cardenuto FerreiraI; Daniel Hidalgo GonçalezII; João Manoel Fonseca FilhoII; Marco Túlio CostaIII; Roberto Attilio Lima SantinIV IProfessor Doutor Chefe do Grupo de Cirurgia do Pé e Tornozelo do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de São Paulo - São Paulo, SP, Brasil IIMédico Residente do terceiro ano de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de São Paulo - São Paulo, SP, Brasil IIIMestre e Assistente do Grupo de Cirurgia do Pé e Tornozelo do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de São Paulo - São Paulo, SP, Brasil IVProfessor Doutor Consultor do Grupo de Cirurgia do Pé e Tornozelo do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de São Paulo - São Paulo, SP, Brasil

RESUMO OBJETIVOS: Traçar o perfil epidemiológico dos pacientes diabéticos portadores de artropatia de Charcot acometendo exclusivamente o mediopé ou estendendo-se do mediopé ao retropé. Avaliar, a médio prazo, o resultado do tratamento a que esses pacientes são submetidos seguindo um protocolo preestabelecido.

MÉTODOS: Avaliamos, retrospectivamente, 88 pacientes (110 extremidades) portadores de artropatia de Charcot do mediopé, com seguimento mínimo de 12 meses. Incluímos os pacientes portadores de artropatia de Charcot acometendo as articulações tarsometatársicas, 45 pacientes (51%); as articulações talonavicular, calcaneocuboide e subtalar, 20 pacientes (23%); e aqueles com envolvimento do mediopé e retropé, 23 pacientes (26%), segundo Brodsky e Trepman. Definimos como sucesso a preservação de um pé funcional e insucesso como amputação do pé.

RESULTADOS: O tratamento da artropatia de Charcot envolvendo primariamente o mediopé foram satisfatórios em 75 pacientes (85%) tratados seguindo nosso protocolo. Nos pacientes com lesões graves, acometendo tanto o mediopé quanto o retropé, foi necessário maior número de cirurgias complexas do tipo artrodese para se obter o mesmo índice global de resultados satisfatórios. A lesão osteoarticular originada no mediopé provavelmente estende-se progressivamente ao retropé devido à demora no diagnóstico no início do tratamento adequado. CONCLUSÃO: Foi possível preservar uma extremidade funcional em 85% dos pacientes. Lesões graves envolvendo o mediopé e estendendo-se ao retropé necessitaram maior número de cirurgias para o tratamento. Artropatia Neurogênica; Diabetes; Pé; Amputação

Referência de informação

Diabetes » Neuroartropatia de Charcot » Mediopé

The article is a translation of the content of this work » Portuguesa, Artropatia de charcot do mediopé no paciente diabético: complicação de uma doença epidêmica, scielo.br
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